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  • Writer's pictureMaria Freitas

O beijo de Emma e Cobra

Capítulo 1

Aquela pessoa que ainda não é Cobra

Minha parede é rosa.

E tem papéis de parede em formato de nuvens. Gosto de me enganar e pensar que pedi para ela ser assim para representar o céu alienígena do planeta de onde vim, mas não vim de outro planeta. Sou daqui mesmo, para o meu desgosto.

Nasci em Santa Maria Madalena, Minas Gerais, Brasil, Terra, em 8 de março de 2003. Sim, no dia da mulher. Não é irônico?

E agora, há poucos meses de fazer 17 anos, percebo que há muito de mim agarrado na minha infância, em quando meu pai ainda estava vivo. Sei lá, acho que eu deveria pintar as paredes de preto e colar pôsteres de bandas de rock dos anos 2000, tal qual um adolescente dos anos 2000 dos livros que eu gosto.

Mas nem isso eu sou.

Seria mais fácil se eu soubesse alguma coisa real sobre mim.

Eu gosto mesmo de Green Day ou só me forcei a gostar porque era a banda favorita do meu pai e eu queria ser que nem ele? Tipo, eu gosto de Rihanna também e, que ninguém ouça, cantoras pop brancas com músicas que dão sono. Odeio rosa ou só o fato de rosa ser visto como “cor de menina” (e eu odeio que me vejam como menina)? Tipo, odeio azul, mas tenho várias coisas azuis (embora ninguém me veja como menino, o que é meio frustrante às vezes).

Eu gosto de verde. É… de verde eu gosto.

E de Linkin Park.

Meu pai não gostava de Linkin Park.

Acho que estou andando demais com a Emma. Ela que costuma emendar um trem no outro e falar coisas sem sentido.

E aí percebo que estou sorrindo ao pensar nela e meu mundo desaba mais uma vez. Então tiro as mãos de trás da cabeça e esfrego o rosto para voltar para a realidade.

Eu deveria falar para ela. Dizer que depois que a gente ficou mais próximo todo o resto parou de fazer sentido. Dizer que tentar impressionar o grupinho de legais da escola perdeu a graça depois que achei alguém que realmente vale a pena impressionar. Dizer que os olhos dela são bonitos e que eu amo o jeito como seus cachinhos se enrolam pequenininhos, menores que os meus. E que eu quase desmaiei (de verdade, minha pressão caiu) quando ela apareceu na escola com o cabelo trançado e com as pontas verdes. E que, depois disso, eu passei a amar verde. Não porque lembra os meus olhos e os olhos do meu pai, mas porque me lembra dela, daquele dia em que a vi sentada na grama rabiscando o livro de matemática, do sorriso bonito que ela abriu enquanto murmurava consigo mesma, olhando para o nada de um jeito perdido.

Meu corpo fica esquisito e quente, então me viro de lado ouvindo a cama ranger.

Talvez eu pinte as paredes de verde no fim das contas.


 

Capítulo 2

A garota mais esquisita da escola

Aquela pessoa que ainda não é Cobra me chamou para a casa da árvore de novo. Dessa vez não tenho uma desculpa boa para não ir.

Não sei como falar para a única amizade que tenho que não estou a fim de limpar um barraquinho de madeira hoje, nem de enfeitar as paredes com polaroides, nem de tentar transformar o lugar em um refúgio. Não sei o que o pai da pessoa que ainda não é Cobra estava pensando quando resolveu construir aquela casinha mesmo estando doente. Talvez ele tenha achado que daria tempo de terminar tudo antes de morrer. Talvez eu esteja com inveja porque meu pai nunca construiu nada para mim. Talvez eu esteja amarga porque meu pai escolheu ir embora.

E é por achar que estou sendo insensível nos meus próprios pensamentos (o que nem faz sentido, porque é o único lugar onde a gente pode se permitir ser horrível às vezes, e eu acho que nunca diria essas coisas em voz alta para ninguém, pelo menos) que aceito ir ajudar a arrumar a casa da árvore.

Levo uma planta que pego entre as que minha mãe bota na janela (depois aviso que peguei) e um quadro de borboleta que ganhei de aniversário no ano passado e nunca pendurei na minha parede. Se eu não levar nada, a pessoa que ainda não é Cobra vai encher o lugar de livros e daí que eu não vou querer ir para lá mesmo.

E eu só vou andando essa distância toda até um canto escondido na zona rural de Santa Má porque gosto muito de estar perto da pessoa. Gosto de ir para lá, sentar no chão quentinho perto da árvore e ficar olhando minha única amizade da vida ler algum livro bobo de um cara chamado João Verde (sendo que a gente já viu filme desse cara e só serve para fazer o povo chorar, tipo, pra que matar os adolescentes, sabe? Nossa vida já não é ruim o bastante?. Ok que a vida desses adolescentes americanos que dirigem carros e têm tênis legais é bem melhor do que a minha, mas mesmo assim…)

Vou andando devagar, porque a planta é mais pesada do que achei que seria. Felizmente, como moro na última casa da última rua da cidade, chegar à zona rural é tipo dar um passo.

Não preciso andar tanto assim na estrada de chão, mas ando bastante no meio do pasto, desviando das bostas de boi e me segurando com medo de dar de cara com alguma vaca perdida. Uma vez, alguns anos atrás, quando eu morava em outra casa, acordei com um barulho estranho na rua, que eu podia jurar que era uma invasão alienígena. Então ouvi o mugido e, assustada, sentei na cama. Dei de cara com uma vaca me espiando pela janela. Juro. Eu odiava morar naquela casa porque ela não tinha varanda e minha janela dava para a rua. Na casa para onde a gente se mudou, pelo menos, a minha janela dá para o muro sem reboco. Mas ainda não temos uma varanda.

Meus braços doem antes que eu vislumbre a casinha de madeira. E só não desisto porque realmente não tenho outros amigos. A pessoa que ainda não é Cobra foi a única que me deu alguma abertura. Que teve paciência para minhas distrações. Que não me achou esquisita. Ok, talvez tenha achado… talvez ainda ache, mas meio que não se importa com isso. E isso é fofo, porque, se eu for admitir a verdade, ninguém gosta de ficar andando com uma garota que fala sozinha e às vezes não consegue acompanhar os assuntos porque se perde dentro da própria cabeça. Mas a pessoa que ainda não é Cobra anda comigo e fala comigo e me traz de volta pacientemente quando me perco.

— Ei, Emma. — O aceno não é nada discreto e me faz… sorrir. Disfarço rápido, fechando a cara para mostrar todo o meu esforço e sacrifício de vir até aqui carregando essa planta pesada. — Me dá aqui. — Se aproxima e toma o vaso da minha mão com cuidado. Tiro o quadro de dentro da mochila e o abraço, como se fosse um ursinho de pelúcia. Entro na casa da árvore devagar, um passo pesado fincado no chão, depois o outro. A pessoa deixa a planta em um canto, junto com algumas ferramentas, depois se vira para mim. — Uma borboleta? — diz quando vê o que carrego. — O que significa?

— Nem tudo precisa significar alguma coisa. — Dou de ombros e entrego o quadrinho. — Às vezes é só um presente que você ganhou e não sabe onde colocar.

A pessoa que ainda não é Cobra ri, soltando arzinho pelo nariz (de um jeito bem fofo, que saco!), e coloca o quadro com cuidado no chão, perto da planta.

— Que bom que deixei o martelo aqui.

Não digo nada, apenas me sento perto da árvore e fico olhando para tudo e nada ao mesmo tempo. Não noto quando a pessoa termina de pendurar as coisas na parede, se senta do meu lado e passa o braço por trás das minhas costas.

— Tá ficando bonito aqui — admito, prestando atenção na luz que entra pela única janela.

— Obrigado por me ajudar a terminar — diz, baixinho. Minha pele arrepia de leve.

— Mas a gente não terminou. — Pouso a cabeça em sua clavícula, para deixar bem claro que o que eu disse não é um protesto e que, por mim, a gente ficaria aqui sem fazer nada até anoitecer.

— Obrigado mesmo assim.

— Tá bom.


 

Capítulo 3

Aquela pessoa que ainda não é Cobra

Emma está deitada quase que no meu peito. Nossa diferença de altura é tão gritante que me causa uma sensação gostosa. Eu me sinto… grande, me sinto… sei lá. Não quero pensar nisso agora.

Quase não me movo, evito até respirar, porque não quero que ela se levante. Mas ela se mexe de repente, vira o rosto e fica me olhando de um jeito curioso e meio perdido. O olhar dela é sempre perdido, me faz desejar querer ler sua mente. O que tanto ela pensa para ficar assim, tão aérea e distraída? Será que pensa no quanto estamos perto? Será que pensa nas nossas bocas tão próximas, na respiração dela se misturando com a minha, no coração acelerado batendo tão alto que acho que dá para ouvir lá de casa?

Ela não diz nada, só fica me olhando como se quisesse dizer. Então sorri.

O impulso vem como uma tempestade e, quando percebo, já fiz.

Beijo Emma.


 

Capítulo 4

A garota que nunca tinha beijado ninguém

Estou sendo beijada.

E é muito estranho.


 

Capítulo 5

Aquela pessoa que ainda não é Cobra

Não sei onde colocar minhas mãos.

Não sei o que sentir.

Não sei por que a Emma ainda não me afastou.

Toco o rosto dela com a mão suada. Eu devo estar passando mal, porque meu coração está batendo tão forte e estou sentindo tanto calor…

O impulso aumenta, então beijo Emma pra valer. Não só um toque amassado de lábios, mas um trem aberto, com movimento descompassado, meio desastroso.

Ela vai me afastar a qualquer momento agora, posso sentir. Vai me empurrar e perguntar se endoidei de vez.

Sinto minha garganta fechar, não consigo respirar, então me afasto, me levantando em um pulo. Emma arregala os olhos e abre a boca para dizer alguma coisa, mas não fico para ouvir. Não quero ouvir. Sei que ela vai dizer que fiz merda e estraguei tudo. Sei que vai me rejeitar.

É por isso que saio correndo.


 

Capítulo 6

A garota que acabou de beijar alguém

Nossa, será que eu beijo tão mal assim?


Capítulo 7

Aquela pessoa que ainda não é Cobra

Eu saí correndo.

Meu Deus, eu realmente saí correndo!

Só me dou conta disso quando já estou passando em frente à casa da Emma. Ela vai me odiar. Deve estar odiando agora. Eu não devia ter beijado ela, sei disso. Beijar amigo sempre termina em desastre, cedo ou tarde.

Minha mãe me pergunta se estou bem quando entro em casa, e tudo o que faço é responder com um aceno e subir para o meu quarto. Não consigo nem olhar para ela, vem sendo assim há alguns meses. Sinto culpa e medo. Culpa por ser uma decepção inevitável, medo de ela me rejeitar por isso.

Eu gosto de meninas, mas não sou uma.

Eu gosto de meninos, mas não sou um.

E desde que entendi isso, as coisas estão sendo insuportáveis.

Não sei por que beijei a Emma. Ela já me disse que acha que gosta de meninas, mas eu não sou uma menina. Não suporto nem a ideia de a Emma ter gostado de me beijar porque acha que sou uma menina…

Deito de costas e olho do teto para a parede rosa. Odeio essa parede. Odeio tudo.

— Tá tudo bem, meu amor? — Minha mãe está com a cara enfiada por uma fresta da porta, olhando para mim daquele jeito que não mereço. Ela vai me odiar quando souber a verdade. A Emma também.

Por que eu sou assim?

— Uhum — respondo, me virando para esconder que meus olhos estão cheios d'água. O colchão range e se mexe, e as mãos da minha mãe tocam meu braço de leve.

— Cê sabe que pode me contar qualquer coisa, não sabe? — diz baixinho.

— Uhum — digo de novo, fungando de leve.

— No seu tempo. — Toca meu cabelo curtinho, bem na lateral onde está quase raspado. Foi ela que me levou ao barbeiro e incentivou que eu fizesse o corte que quisesse. Talvez eu devesse falar para ela o que estou pensando, talvez ela continue me amando.

Mas… e se algo mudar?

Não respondo nada, só fecho meus olhos e espero o tempo passar.

Minha mãe se levanta e vai embora, o dia escurece. Espero a Emma aparecer para me bater por ter beijado ela. Espero uma mensagem dela perguntando onde eu estava com a cabeça. Mas nada disso acontece. Checo o celular de minuto em minuto, até me estressar, desligar e enfiar o aparelho dentro da gaveta da mesinha de cabeceira.

Talvez eu devesse mandar mensagem, mas não mando. Em vez disso, me levanto e vou até a janela. Vejo os telhados de algumas casas, as árvores e a rua. Depois observo o céu claro. É quase lua cheia e as estrelas estão escondidas pela luz. Ainda assim dá para ver uma. O brilho rosa se mexe pelo céu e vai ficando mais forte, como se estivesse se aproximando.

Demoro alguns segundos para perceber que é uma estrela cadente (certamente um meteorito ou até um meteoro, pela velocidade e tamanho), e não tenho muito tempo para pensar em um pedido melhor.

Tudo o que eu queria era poder saber o que as pessoas estão pensando antes de fazer merda. Antes de tomar a decisão impulsiva de beijar minha melhor amiga. Antes de contar para a minha mãe que sou trans. Eu queria saber o que as pessoas pensam de mim. Queria poder entendê-las. Queria me entender.

Então, sem controlar meu coração acelerado, faço um pedido silencioso para o pedaço alienígena que está caindo na Terra.

Quero ser alienígena também.


 

Capítulo 8

A garota esquisita que beija esquisito

O dia já está escuro quando reajo e decido parar de esperar pela pessoa que ainda não é Cobra.

Nunca vi um trem desse! A pessoa me beija, sai correndo e depois não manda nem uma mensagenzinha para avisar se está bem… ou, sei lá, pedir desculpas. Não sei bem desculpas pelo quê, se pelo beijo (que foi meio ruim) ou por ter corrido (o que foi pior ainda).

Eu queria pelo menos alguma coisa, mas o que recebo são horas de silêncio.

Talvez eu devesse mandar uma mensagem.

Pego o celular e não tenho nenhuma notificação. Tipo, ninguém mais fala comigo, além da minha irmã e da minha mãe. Nunca fui muito boa em fazer amizades. Daí a que eu faço me beija e sai correndo… É brincadeira!

Quer saber? Eu que não vou procurar. Cedo ou tarde todo mundo sai correndo de perto de mim mesmo…

Mas isso não me impede de voltar para casa com os ombros caídos. Tranco a casinha e levo a chave comigo. Amanhã entrego para a tia Andréia na hora que for levar tortas para o pessoal do hospital.

Tento não ficar pensando no que pode ter errado comigo para a pessoa que ainda não é Cobra ter saído correndo. Eu nunca pensei que alguém pudesse olhar para mim de um jeito… romântico, porque eu mesma nunca olhei ninguém assim. E talvez a pessoa que ainda não é Cobra não olhe para mim de um jeito romântico e o beijo tenha sido só um impulso. Pensar nisso me tranquiliza um pouco. Eu só não quero perder a única amizade que tenho, isso sim seria horrível. Sei que gostar de mim não é fácil, mas é legal quando alguém gosta. Quando alguém me escuta e me olha de um jeito fofo, sem me julgar. Quando alguém está sempre pronto para dividir as fofocas comigo.

Pensar que não vou mais ter isso me apavora bastante, então tento não pensar.

O céu está claro, então vai iluminado meu caminho enquanto os postes da cidade ainda são pontinhos de luz distantes. A lua está bonita, quase toda cheia… Caramba, a pessoa que ainda não é Cobra me beijou… E, ok, o beijo foi estranho, mas foi bom. Não o ato de beijar em si, porque realmente… as pessoas gostam mesmo disso? Mas é bom saber que alguém quis me beijar… Eu pensava que ninguém nunca ia querer.

Dou um sorriso bobo, que nem me preocupo em disfarçar já que ninguém está me vendo, e me sinto forte e frágil ao mesmo tempo. É uma sensação boa não precisar usar uma casca o tempo todo, eu queria poder ser assim mais vezes.

Uma estrela cadente maior do que o normal (talvez um satélite do Elon Musk caindo na Terra) corta o céu.

Às vezes tudo o que eu queria era ser especial de um jeito bom, ser interessante em vez de esquisita, ser fodona em vez de boba, ser forte e inabalável mesmo me permitindo ser sensível também. Alguém que as pessoas querem ter por perto, e não alguém de quem querem fugir.

Eu só queria ser indestrutível.


 

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